domingo, 2 de janeiro de 2022

AS ESTRELAS CADENTES

 

AS ESTRELAS CADENTES

Romance de Rogel Samuel

 CAPÍTULO 1


No tao lemos que:


Conservando a Grande Imagem
O mundo passa
Passa sem danos
Com tranqüilidade, serenidade e supremacia
A música e as iguarias
Param o viajante
As palavras que nascem do Caminho
São insossas, carecem de sabor
Olhar não é suficiente para vê-lo
Escutar não é suficiente para ouvi-lo
Usar não é suficiente para esgotá-lo


Acordo no meio da noite, abro a janela e vejo que a noite está coberta de estrelas.

Calor sufocante.

Penso em tomar um banho frio, mas fico algum tempo olhando o céu que se descobre aos meus olhos, ao longo dessas montanhas azuis onde eu agora vivo, longe de tudo, na paz desses meus recentes anos.

Moro só, longe de todos, como afirmei.

Minha única companhia é o garoto Carlos, que aparece de bicicleta, trazendo comida, limpa a casa, dá um dedo de prosa, sorri como todos os adolescentes, e conta algumas novidades.

Meu amigo advogado se encarrega de remunerar a família de Carlos para que faça essa visita diária, ou quase diária.

 

CAPÍTULO 2

Aqui eletricidade, celulares, música.

Há oposição de meus amigos ao meu modo de

vida, mas solidão? - não me lembro desse sentimento

há muito tempo.

Uma coisa me está intrigando: As estrelas parecem estar cada vez mais perto, mais baixas, como se estivessem “caindo”.

Talvez eu precise de um novo exame de olhos.

Isso me daria trabalho, teria de marcar uma consulta, ir à cidade etc.

Não quero fazer mais isso.

Não, não preciso não.

Mas para mim, as estrelas estão “caindo”, caindo do céu, desabando em bando, vindo abaixo de uma só vez.

Sim.

Talvez eu esteja louco.

Ninguém reclama, ninguém vê isso, só eu.

Não tenho TV, que aqui não pega, minha Internet é fraca, mas ninguém diz nada.

Só eu vejo esse fenômeno.

Eu esperava que alguém dissesse algo, mas ninguém disse nada.

Nada.


 

CAPÍTULO 3

 

A novidade foi que Carlos foi atacado por uma onça que quase o pegou.

 A partir daí eu mandei que ele viesse acompanhado do irmão, que é caçador.

- Você ficou com medo? Pergunto ao Carlos.

- Sim, respondeu ele.

E acrescentou:

- Saí correndo, e foi aí que a onça correu atrás, mas como estava perto de casa ela fugiu, com medo dos cachorros.

- Era onça parda pequena, disse o irmão caçador.

Eu guardo um Taurus 38 cano curto na gaveta.

O irmão falou:

- Já vi coisas piores por aqui. Já vi uma pintada.

- E você não reparou nada de anormal durante a noite? – pergunto ao Carlos.

- Como assim, fez Carlos com um sorriso (ele sorria por tudo).

- Olhando as estrelas...

Aí ele se assustou.

O irmão começou a rir dele.

- Eu nunca olho as estrelas, respondeu, já me olhando desconfiado. Não faço isso, não.

O irmão continuava a rir.

- Nunca?

- Não nunca, eu vou dormir...

- Pois passe a olhar, Carlos, veja se há algo diferente nelas, depois me conte.

Ele riu, mas me olha de modo estranho.

- Tá bom, apressou-se a dizer, mas agora temos que ir, estou atrasado, e montou sua bicicleta e saiu correndo.

O irmão, o caçador Fernando, estava às gargalhadas.

Ele tinha uma espingarda.

 

CAPÍTULO 4

 

Nunca mais falei sobre as estrelas.

E realmente elas deixaram de me importunar.

Agora pareciam fixas no céu, como sempre foram.

 

Mas certa noite acordei assustado.

Estrelas de estranho fogo despencavam do céu como bolas de bilhar.

Algumas caíram bem perto de mim.

Depois pararam. Houve um silêncio. O mundo parou.

 

Eram de fogo?

Não, não eram.

Aquilo se apagava logo que caía no chão.

Fossem de fogo incendiariam a floresta.

Mas faziam barulho ao cair.

Como balões dágua.

 

Depois voltei a dormir sossegado, achando que aquilo tinha sido apenas um pesadelo.

Eu já estava acostumado àquele tipo de maluquice, já estava certo de que nada ia me afetar.

 

CAPÍTULO 5

 

Mas no meio da noite acordo com meu quarto cheio de “nagas”.

Em multidão eles se prosternavam em direção a uma pequena estátua de Guru Rinpochê que estava em cima da cômoda.

Em estava com sono. Volto a dormir na minha rede.

Aquilo não me perturbou.

Era um tipo de sonho que sempre tive.

Certa vez sonhei que um “mahakala” se desprendia da moldura de seu quadro e pairava no ar.

Eu não tenho mais esse quadro.

Os “mahakala” são entidades protetoras.

A noite continua a mesma.

A noite sobre a noite. Como nos versos de Murilo Mendes:

Esta mulher sem fim e a noite sobre a noite
E esta fome de ti, meu Deus talvez de mim.
Quem sabe eu já morri, meu esqueleto eterno
Em pé nos séculos e nas ondas me reveste.



CAPÍTULO 6


Mas depois aconteceu um fato que me abalou profundamente: quando abri a varanda, pela manhã, encontrei uma onça saindo de lá.

Passei a ver perigo por toda parte.

Tive de comprar um cachorro e dormir com ele ao meu lado,

Não, não dá pra conviver com onça ao redor da casa. Estava chovendo e ela resolveu dormir na minha varanda.

Sim, me apavorou. Passei a andar armado, e com o cachorro preso na coleira.

Não, não dá para ficar tranquilo sabendo que uma onça está rondando a casa.

Eu estava mesmo pensando em contratar o caçador para matá-la.

Mas sou contra isso. Não admito a matança de animais. E talvez por causa disso mesmo aquela onça não tivera medo de dormir na minha varanda, de onde ela pode me ver dormindo, ressonando na rede, separado apenas por uma fina tela de mosquito.

Não, aquilo me abalou sinceramente.

Com uma onça não.

Comprei um cachorro e uma espingarda. Dormia em alerta. 

Era o caos.



CAPÍTULO 7



Como o meu cachorro não combinava com os cães de caça do caçador, e um latia contra os outros, fiquei sem o cão.


Se eu tivesse de contratar um caseiro perderia a paz. Seria melhor sair dali de vez.

Assim continuei ali, acostumando-me com a ideia de ser atacado por uma onça a qualquer momento fora da casa.

Era uma ideia sinistra, mas viável. ainda que eu trouxesse uma espingarda a tiracolo.

Teria de decidir o que fazer, mas adiava a decisão.

E fui ficando, até acostumar-me com a ideia de que a onça me esquecera, que se fora, e que eu não estava no seu cardápio.

Já saía sem espingarda, ficava um longo tempo lá fora, passeando, meditando, esquecido de que aquele já tinha sido o território dela.


Até que um dia aconteceu: Dei de cara com a onça.



CAPÍTULO 8


Eu vinha andando distraído sem cão, sem arma pelos longos caminhos desse terreno quando me deparei com ela, com a onça, tão integrada à paisagem que ainda dei dois passos em sua direção.

E parei. Tentei recuar. Ela estava deitada num galho caído pegando sol, me olhou com desprezo, levantou-se e "voou" para o outro lado.

Eu ainda fiquei paralisado ali, fui recuando e voltei pelo mesmo caminho até a casa.

Sim. Ela estava lá. Ela vivia nos arredores. E agora. Que fazer? 


Dias depois eu soube que ela tinha sido morta numa fazenda da região.


Assim:


Conservando a Grande Imagem
O mundo passa
Passa sem danos
Com tranqüilidade, serenidade e supremacia
A música e as iguarias
Param o viajante
As palavras que nascem do Caminho
São insossas, carecem de sabor
Olhar não é suficiente para vê-lo
Escutar não é suficiente para ouvi-lo
Usar não é suficiente para esgotá-lo


CAPÍTULO 9

Esqueço o perigo. Agora posso caminhar bosques e ouvir pássaros. Não preciso de armas, medo. Acompanho a natureza. O mundo voltou a sua respiração. 

Percebo um ninho de gaviões na fenda da montanha. Era talvez um casal e filhotes. Ao por do sol aparecem. Vejo-os através do binóculo. 

Um pouco para o leste, o vale parece curvar-se. As estrelas reaparecem nítidas. Cada vez maiores, mais ameaçadoras.

Maiores.

São sóis circulantes como os de uns quadros. 

Eu sonho com elas, e nos sonhos me contam segredos misteriosos.

O mundo se põe a perder sob o poder dos buracos negros daqueles sóis.

O fim da comédia dos tempos. Pesadelo.


Sim, foi aí que eu percebi que subia um silvo vindo do fundo da noite, dos longes da floresta.

Era o começo da invasão daqueles povos que se aproximavam, daquele exército como de fantasmas.

O peso de sua marcha fazia o chão estremecer e ondular.

Eles vinha do coração das trevas, saíam talvez das cavernas secretas onde viveram e prosperaram.

Pelos caminhos eu já os sentia próximos.

Nítidos. 

Para mim, aquilo se aproximava. Como rugido marcial de tambores.

Saí dali e tranquei a porta.

Aquilo diminuiu. Passou. 

Um silêncio negro cobriu a floresta.

- Você sabe de que eu tenho tanto medo? - pergunto ao telefone à minha ex-mulher, XXX.

Silêncio.

- De quê? - retruca ela, depois de uma pausa.

- De que estamos passando pelo início do fim do mundo e só eu esteja percebendo.

Ela riu, ironicamente.

- Você sempre teve essa idéias...

- E ninguém acreditou em mim, respondo logo.

E depois de um suspiro:

- Foi assim com a Pandemia, com quem sonhei anos antes e que está longe, muito longe de acabar.

- Nada disso, me corta ela, com as vacinas...

- As vacinas não estão dando conta, a desgraça do mundo está de novo anunciada.

- Chega, me disse ela, tome um calmante e vá dormir.


CAPÍTULO 10


No dia seguinte, verifico que algumas estrelas estavam no chão, ou melhor, um simulacro delas.

Era como se o céu parcialmente desabasse e deixasse rastros.

Os rastros significavam que bolas de um fogo simbólico tinha caído do céu, bolas do tamanho de uma bola de bilhar.

Algumas ainda fumegavam. 

Eu não sei explicar tudo isso. Nem tenho a quem recorrer sem parecer louco.

O dano vinha de três partes. Do alto; de baixo; e do exército do meio ambiente.

Do alto, das estrelas, vinham vírus da morte; de baixo, vinham demônios matadores; do meio, um exército.


ÚLTIMO CAPÍTULO


Súbito do alto do céu desceu uma nuvem branca do Exército de Shambhala e uma grande mas silenciosa batalha se travou.

No dia seguinte, tudo parecia em paz.

Há muito tempo eu não se via a natureza assim. Em paz.

O mundo parece que voltou aos eixos.

Eu acordei no horário de ver a luz do sol despontar.

Vários dias se passaram. 

Não sei por que um pássaro negro passou a me interessar.

Todas as tardes ele passava na linha do horizonte e olhava bem direto para minha casa.

Um dia, ele olhou e desapareceu.

No dia seguinte apareceu na minha porta uma senhora idosa pedindo emprego para sua neta.

A neta se chamava Ananda.

Ananda tornou-se empregada de minha casa, passou a morar comigo, e iluminou a minha vida.

Ananda, misteriosa e extrema.

Quase não falava, queixo elegante, ombros largos, gestos ofegantes.

Qual era o mistério daquela silhueta silenciosa?

Morena, magra, longilínea, estava sempre no momento certo perto de mim.

Sabia que eu estava ali, mas não se demonstrava mais do que uma deusa, fada,  lenda.

Ananda deixou a casa com um perfume silvestre. Fazia novas iguarias, produziu uma horta e um pequeno jardim. 

Como apareceram problemas a resolver, fui ao Rio de Janeiro com Ananda. 

Fui dirigindo, o que não fazia há algum tempo.

Comecei a pensar em sair do degredo e volta a morar no Rio.

Mas voltei.

No céu, as estrelas pareciam distantes.

Eu vi que o mergulho no infinito ia acontecer.

Vi que o globo ser atacado por uma nova pandemia, um desastre.

A nova pandemia ameaça a vida no planeta Terra.

A sobrevivência da vida humana está ameaçada.

Que fazer?


FIM